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Enquadres e seus manejos na clínica contemporânea.

O enquadre ou enquadramento na psicologia consiste em estabelecer um CONTRATO JURÍDICO com o paciente, visando facilitar e estabelecer limites no ambiente de trabalho. Neste contrato a analista ou psicóloga, insere o valor de seus honorários, a frequência dos atendimentos, os dias da semana e os horários dos atendimentos. Além de apresentar suas políticas de falta, cancelamento e remarcação, dispositivos legais de proteção do consumidor e do código de ética, além de apresentar o método que o profissional utiliza. Todos os procedimentos burocráticos que asseguram (implicitamente) a sensação de segurança (ou não). O enquadre, passa então rege o comportamento da dupla analista-analisando diante das normas pré-estabelecidas pelo contrato jurídico.


De acordo com o psicanalista José Bleger (1988), citado por Costa (2015) o enquadre é um termo relacionado a elementos que não mudam sendo entendido como um NÃO PROCESSO que garante a instauração de PROCESSOS resultantes no desenvolvimento de fenômenos, estabelecimento de relações e expressões de comportamentos. Tendo como função atingir a estabilidade possibilitando movimentos e processos criativos, mas, nenhum enquadre consegue sua estabilidade por si só, ele necessita de uma relação dialética com os processos para sua reedição.


De acordo com Bleger (1988), o enquadre representa a instituição, uma vez que estabelece normas e atitudes em parâmetros específicos ou como base para ocorrência de comportamentos. Consequentemente, o enquadre é parte integrante da identidade do sujeito. A função do enquadre é depositar os estratos da personalidade que não foram conscientemente elaborados, os quais estão em estado de comunicação pré-verbal, fusionado, transmitindo sentimentos e sensações indiscriminadamente, constituindo a estrutura inconsciente de todo o vínculo.


Embora Bleger (1988) pontue que a emergência do enquadre (não processo) na produção dos processos, René Roussillon (2019) psicanalista francês, membro da Sociedade Psicanalítica de Paris em sua releitura acerca do enquadre, altera a lógica proposta por Bleger. O autor salienta que é o encontro clínico (processo) que permite o enquadre (não processo) progressivamente conquistado; a alteração da lógica proposta por Bleger, permite uma certa adaptabilidade do clínico, diante do encontro (processo), possibilitando o estabelecimento do enquadre sob medida.


Na clínica, conceber o conceito de enquadre, enquanto, um não processo, pode contribuir na condução do manejo clínico (processo) em pró as necessidades do analisando. Conceber os movimentos que atraem ou repelem o analisando para seu próprio processo, não como resistências, mas sim, como enunciadores inconscientes, pré-verbais não simbolizados. O enquadre, diz o autor, institui o encontro clínico e, portanto, tudo dentro do enquadre clínico deve ser construído e ordenado para ser usado, não apenas em palavras, mas sim em ação (ROUSSILLON, 2019). Sendo de responsabilidade do analista por avaliar o que escutou/observou em relação a uma falha de funcionamento do enquadre que somente ele consegue perceber e compreender (URRIBARRI, 2010).


A introdução do conceito de enquadre inaugura uma disposição triádica, que perpassa pela relação intrapsíquica e interpsíquico (Transferência, Contra-Transferência e Enquadre, ou então, paciente-profissional-enquadre), sua natureza é transicional (entre realidade social e a realidade psíquica). Que se diferencia da simples situação material (Contrato Jurídico), sendo concebido como uma função que determina o encontro e o processo analítico (URRIBARRI, 2010). É tanto externo quanto interno; externo no que diz respeito ao contrato jurídico e seus efeitos comportamentais; interno, no que diz respeito a sua história diante do encontro com o contrato narcísico, contrato simbólico e enquadre interior do analista, que estarão em jogo no processo analítico (Winnicott, J.Bleger, A.Green, R.Roussillon).



Um mergulho nas profundezas do enquadre analítico;

Contrato Narcísico


De acordo com Roussillon (2012, 2019) o contrato narcísico, é o contrato de base, para os processos de socialização que se fundamenta na percepção da ausência do outro e, consequentemente, na percepção da própria falta. Ocorrendo durante o primeiro estágio do desenvolvimento emocional, o estágio de dependência absoluta, a partir da experiência de desamparo (ROUSSILLON, 2012).


Ocorre que, quando alguma necessidade do bebê não é saciada, o mesmo, é convocado a proteger-se, quando todas as tentativas de soluções internas fracassam, “desencadeia um estado de desamparo primário, que é um estado de tensão e de desprazer intenso, sem saída interna, sem fim nem representação” (ROUSSILLON, 2012, p.278), Duas situações podem ocorrer, segundo o autor:


Se o estado de desamparo primário vier acompanhado por traços mnésicos de experiências de satisfação em relação a um objeto, ele se torna então um estado de falta, ou seja, um estado de esperança em relação à representação de um objeto de recurso. Se o objeto de recurso sobreviver ao desamparo e à falta, isto é, se ele fornece em tempo a resposta que apaziguá o estado de tensão, esta resposta do objeto fornece a base de um contrato narcísico com o objeto. Conforme este contrato, o objeto será investido como objeto da falta se ele assegurar, por sua presença, um paliativo para os estados de desamparo. O objeto será amado por sua presença, faltará em sua ausência e será odiado por isso, sendo, portanto, o objeto de um conflito de ambivalência. (ROUSSILLON, 2012, p.279)

A segunda situação, é a relação com o “preço a pagar” para assegurar-se do recurso ao objeto em caso de necessidade, na pior das hipóteses, o preço é a dependência com o objeto e sua percepção de ambivalência (entre amor e ódio). Principalmente, quando os objetos exigem mais, ou então, uma série de condições do sujeito para a sua manutenção da base do contrato narcísico (ROUSSILLON, 2012).


O contrato narcísico diz respeito ao lugar onde o Eu do bebê irá advir, a partir do próprio narcisismo dos cuidadores; sobretudo, como este (bebê) será investido em gestos (representantes), afetos (carga afetiva) e palavras (símbolos); é o contrato que garante um espaço no grupo familiar. Este espaço de subjetivação do Eu do bebê é influenciado pelo discurso parental, sendo assim, está submetida às normas e às interações com o ambiente sociocultural. Como todo contrato, existe uma contrapartida, que este (o bebê) reproduza e reafirme o modelo social cultural herdado pelo grupo familiar, sem alterações.


O contrato narcísico inaugura o primeiro enquadre, a partir da relação com os cuidadores. Este enquadre, diz respeito à própria noção corporal, diante da presença/ausência do corpo de sua cuidadora. André Green (2001), citado por Urribarri (2010) denomina esta primeira relação, como “Estrutura Enquadrante” que irá inaugurar a separação primária, do interior/exterior, do sujeito/objeto, do Eu/Não-Eu, constituído por dois espaços internos, que correspondem aos investimentos pulsionais (eróticos e destrutivos) e os investimentos narcísicos, que irá inaugurar a matriz simbolizante.


Na clínica, o contrato narcísico dá (daria) o direito e a intensificação da transferência, para o sujeito, explorar permitindo a suspensão das defesas “sociais” que atravessam o sujeito em seu dia a dia. Esta transferência, diz respeito direto ao seu histórico de subjetivação acerca do processo de (in)diferenciação e simbolização.


Contrato Simbólico


O contrato simbólico diz respeito a um certo endereçamento para a figura da analista ou psicóloga, este endereçamento deve por sua vez, garantir ser escutado “sem juízo de valor, sem a priori ideológico ou outros, de ser escutado sobre um fundo de empatia e de benevolência suficiente” (Roussillon, 2019, p.129), sobretudo, é um endereçamento que exige a segurança (holding) subjetiva, daquele que o procura, a partir da reciprocidade e reflexividade e da mutação do contrato narcísico para o contrato simbólico.


A especificidade da “resposta clínica” ao engajamento da realidade na transferência vai ser a de ajudar o sujeito a desenvolver a sua reflexividade, ajudá-lo a ser capaz de se sentir, se ver, se escutar; de se sentir melhor, se escutar melhor (ROUSSILLON, 2019, p.47).

Para o autor, isso implicaria em uma adaptabilidade do analista em seu método e condições para o encontro clínico, além da exigência de seu próprio narcisismo, que culminará em experiências de indiferenciação com o analisando. A duração e a frequência dos encontros, ditará o ritmo de presença, ausência e diferenciação entre a díade analista-analisando, pelo enquadre. Exigindo do analista, simbolizar as experiências que vem ocorrendo durante o encontro (processo), com o paciente, sobretudo, permitindo a percepção do que está sendo jogado/não jogado com seus estados internos.


Enquadre Interior do analista


Se o analista se desse conta da turbulência emocional que pode surgir em qualquer sessão, ele entraria em pânico antes do atendimento (Wilfred R. Bion)

Para que todas essas demandas dos analisandos/pacientes ocorram, o analista, carece de um processo interior para suportar os (des)encontros com os seus analisandos/pacientes e questões externas ao encontro clínico.


O Psicanalista Frances André Green em seu livro Sobre a loucura privada irá debater como o enquadre (não processo) da psicanálise clássica, vem reduzindo as possibilidades de encontros (processo) frente a casos-limites ou extremos. Ele pontua, que aquilo que é analisável, está entre o limite da díade analista-analisando, já que o analista ocupa no imaginário do paciente o espaço de alter-ego (outro-eu).


Tal implicação, altera toda a dinâmica postulada pela psicanálise e horizontaliza a práxis (teoria-prática) do fazer análise, pois o analista agora, se ocupa em compreender suas próprias resistências, que demarcam o limite Eu/Não-eu, analista/analisando. O enquadre externo, ocupa o lugar de triangulação, que separa a díade, mas que não é o suficiente diante do encontro clínico, é preciso, que o analista já tenha sido enquadrado anteriormente e consiga fazer essa cisão Eu/Não-Eu, interno/externo. Por tanto, que este consiga simbolizar aquilo que o paciente não consegue.


A partir dessa lógica, o ego do analista, é solicitado ou capturado pelo analisando, para servir como alter-ego, ou então, ego-auxiliar, para dar contorno às angústias do analisando diante de sua vida psíquica. Se apresentará então, uma dificuldade de diferenciação do ego (analista-analisando), que colocará em xeque as capacidades egóicas, dos processos simbólicos, do analista para a elaboração das experiências emocionais vivenciadas no encontro.


No encontro analítico, porém, cabe a nós, analistas, tentarmos reduzir ao máximo esses procedimentos defensivos para deixarmo-nos de fato assustar, acompanhando, ao mesmo tempo, como os analisandos experimentam o susto do encontro e a ele reagem. (FIGUEIREDO, 2021, p.47).

O enquadre interior do analista, refere-se à possibilidade deste de experimentar o “susto do encontro clínico”, sem levantar suas defesas egóicas, abrindo espaço para um lugar de observação, auto-observação e reflexão. Um espaço “terceiro” que permitirá a atividade de elaboração das experiências entre o analista e seus analisandos. O enquadre interior, diz respeito a própria transferência do analista com a psicanálise, cultivada pelas experiências de análise pessoal e prática clínica (FIGUEIREDO, 2021).


Transferência sobre o enquadre e sua matriz simbolizante;


O enquadre carrega a história da simbolização do sujeito, de como este, foi envolvido, pelo enquadre primário de seus cuidadores, a partir de seu contrato narcísico de base. As inscrições deste cuidado, se registram na memória afetiva do infante, antes mesmo da construção de atividades representacionais, através das percepções sensoriais.


Os traços mnésicos representam o elemento básico da matriz simbólica, que vai se complexificando, dando origem ao que conhecemos como imagos ou objetos internos. O conjunto de objetos, articulados entre si, mediante alguma lógica ou gramática emocional, dá origem às fantasias inconscientes (MINERBO, 2013, p.87).

À medida que novos eventos ocorrem, as experiências são conduzidas e representadas de forma intersubjetiva (cuidadores e bebê), sobretudo, se estas experiências forem relativamente de gratificações, o infante tenderá a repetir, um traço comum da subjetividade neurótica. Por outro lado, se nestas inscrições houver traços não integrado de gratificação, ou seja, as gratificações acompanhadas por mensagens “destrutivas” proveniente do inconsciente do cuidador(a), registrará uma ambivalência onde as relações posteriores serão marcadas por estes objetos que atacam enquanto gratificam.


Este processo de simbolização primária, diz respeito a primeira forma psíquica aos elementos afetivos/sensoriais/motores da agonia, esses elementos, caso não simbolizados, permanecerá de forma bruta e tenderá repetir as experiências na tentativa de ser resgatado do vazio de seu desamparo primitiva. Não haverá símbolos possíveis, para representar o desamparo, se não a própria inexistência de representantes, pairamos a beira do vazio e da interrupção da experiência de vir-a-ser. Os símbolos são uma representação que se reconhece, enquanto representação, é uma representação “reflexiva”, por tanto, que se pode ser representada pelos cuidadores (ROUSSILLON, 2019)


A partir desse pequeno recorte, podemos perceber aquilo que se colocaria como resistência ou dos limites que se encarna durante as sessões. Se o analisando carrega em seu psiquismo objetos internos que não conseguiram simbolizar a “ausência”, devido ao excesso de presença ou de falta; este irá, sob a “transferência sobre o enquadre” repeti-las, como uma tentativa de simbolizar o desimbolizado.


Não se trata, sobre as resistências do sujeito, mas sobre a possibilidade, deste, de tentar comunicar a eficácia do encontro clínico e dos processos de simbolização posto. É no enquadre que o analisando enuncia o quão seguro (holding) ou não, está sendo a experiência vivida. O quanto o analista se adaptar às necessidades (internas e externas) do analisando, sendo capaz (ou não) de observar, diferenciar, investir e tolerar o encontro com o analisando e todas suas nuances transferências (positiva e negativas), mas também, todo o arcabouço ou déficit representacional do analisando.


Caso Clínico “O que você esconde?”


C. Uma mulher Jovem Adulta, bartender, entrou em contato comigo, pois receberá indicação de uma colega de trabalho dela. Informou ter achado interessante o flyer, que havia produzido para divulgar minha agenda. O flyer em questão é um “lambe lambe” contendo minhas informações. Menciona que se identificou e que adora “lambe lambe” e arte de rua no geral.


Agendamos a entrevista psicológica (primeira sessão) remotamente, C. contou ser bolsista em artes, e adorava arte de rua, que inclusive, colava “Lambes lambes” como protesto e coletava itens na rua e fazia artes abstratas, deixando na rua novamente, em exposição para outras pessoas pegassem. Informou sobre sua dificuldade de relacionar com as pessoas e que frequentemente sentisse cobrada pelos outros e que iriam repreendê-la. Com frequência informava que gostaria de tirar algo de sua cabeça, pois “era uma mulher difícil de lidar” (sic) e que se sentia alheia a muitos pensamentos que invadiam. Durante a primeira sessão a conexão de C. falhava muito, mal conseguíamos interagir sem alguma interrupção. Ela transitava em seu quarto e seu corredor, enquanto apresentava os cômodos da pensão onde morava, informou que veio para São Paulo muito jovem, para tentar estudar. Decidiu vir por conta própria, tinha em suas mãos, sua mala e duzentos reais, alugou uma pensão na região da Zona Leste e comprou alguns doces para vender nas ruas. Enquanto realizava a sessão, fui percebendo que a dimensão de público e privado não era tão relevante para C. pois se expressava naturalmente quando estava no corredor, mencionei que a sessão não poderia ser realizada no corredor, que ela teria que encontrar um ambiente onde garantiria a segurança, privacidade e uma boa conexão dela. Ela se opôs, informou já estar acostumada com não ter um espaço para si. Relatou que na casa dos seus pais dormia na sala, e suas 2 irmãs e seu irmão dormiam em um mesmo quarto, seus pais em um quarto para o casal, somente ela, não tinha um espaço para si. Optei por encerrar a primeira sessão mais cedo, frisando a importância de um ambiente para ela.


Na segunda sessão, C. havia conseguido um chip de seu namorado para ter melhor acesso à internet, mas, com frequência alguém chamava ela ou sua conexão caia. Mesmo frustrado, com a impossibilidade de ouvi-la de forma contínua, sustentei a sessão mesmo com as falhas de conexão entre nós. As sessões eram marcadas por essa dinâmica, ausência da dimensão público e privado, falhas na conexão e interrupções da experiência de continuidade, o ambiente externo atravessava seu ambiente interno.


Em determinada sessão, C. estava em uma praça, mencionou que estava em trânsito entre seu trabalho e sua faculdade. Informei que não seria possível realizarmos a sessão nessas condições, pois eu estava preocupado com sua segurança e que o ambiente parecia bem deserto. Perguntei se ela estava sentindo-se segura ali, ela informou que não, mas que era o único jeito para realizar a sessão naquele dia. Relembrei do combinado inicial, de que ela precisava garantir condições necessárias para a sessão ocorresse e como ela não havia conseguido garantir o combinado, que iria encerrar a sessão — mal havia iniciado — e cobraria, conforme combinado anteriormente. C. entrou em prantos, mas concordou com tal situação. Interpretei e intervir tal situação a partir das vivências dela, “Eu compreendo C. que você tenha naturalizado não ter um espaço seu, mas veja, a sessão é sua, é um lugar único para você poder falar e expressar o que quiser, e que venho sentido, durante nossas sessões, que você me comunica isso, que nunca teve um lugar para si e que o mundo e os outros podem atravessar você. Mas talvez, esteja na hora de encerrarmos esse ciclo e se apropriar de um espaço só seu, o que você acha disso e o que você sente sobre minha fala?” (Sic). C. concordou em alterar para sessões presenciais e pediu desculpa, sentiu a solicitação como uma bronca, mas que não havia sentido hostilidade por parte do analista, diferente daquilo que mencionará.


Seu primeiro dia na sessão presencial, foi marcado pela dificuldade de entrar no portão, C. tocou a campainha e eu apertei o botão que liberava o portão, esperei por um breve período e não via movimentação por parte de C. interpretei que C. estava ansiosa de entrar em um ambiente novo e fui até o portão. Nos apresentamos pessoalmente, C. subiu as escadas e em seguida eu subi, apresentei a recepção e pedi para ela aguardar por um tempo, senti que ela precisava se ambientar ao espaço. Deixei ela sozinha e entrei na sala do consultório, esperei o mesmo período que aguardei para ela entrar e abri posteriormente a porta e convidei para ela entrar. C. entrou sentou-se na cadeira em que costumo sentar, todos os meus objetos (Livros, Lápis, Marcador de página) estavam virados para essa direção. Senti que ela precisava se ambientar com a minha presença e me calei frente ao espaço que ela escolheu, sua primeira fala, durante a sessão, foi como era diferente o espaço e a presença física, mas que se sentia em paz.


Durante o período de adaptação no setting presencial, C. continuava a seguir o mesmo movimento, tocava a campainha e não entrava, eu buscava ela e fazia o mesmo movimento, com o mesmo tempo que se originou da primeira sessão. Criamos um ritmo, que se seguiu diante qualquer fala ou interpretação minha.


Suas sessões eram marcadas por descrições do quanto seu emprego exigia muito dela e o quanto a presença de sua gerente a fazia sentir-se desorganizada, sentia a todo momento que iria levar uma bronca dela. O ambiente externo se apresentava mais uma vez intrusivo e sádico. Relatando com frequência sua insegurança financeira, que temia deixá-la em situação de vulnerabilidade. Sentia, com frequência que iria perder sua casa e não iria conseguir sustentar-se financeiramente, rivalizava constantemente com sua gerente a qual tinha intensas crises de ansiedade na presença da mesma.


Após um tempo, a paciente encontrou um emprego CLT e passou a sentir mais segurança e confiança financeira. Durante as sessões presenciais, a dinâmica alterou, iniciava sempre contando como estava feliz e realizara feitos na faculdade, no trabalho e sua vida social e entre esses feitos, o quanto aquilo o desgastava.


Em determinada sessão, narrando sobre seu mal-estar com seus colegas de trabalho e no metrô, dizia estar cansada de se sentir invadida, que todos aqueles olhares deixava desorganizada. Em determinado momento, narra um dia típico de seu mal-estar no trabalho, "estava trabalhando, até que chegou um cliente que vinha sempre no restaurante, vinha ele e o filho dele, perguntei para o cliente onde estava seu filho, ele me falou que não pode comparecer, mas que viria no dia seguinte... No dia seguinte eles vieram e esse cliente (pai) falou na frente dele, olha C. Ele veio hoje, você não perguntara dele?" (Sic). Posteriormente narra que foi muito desconfortável a situação, sentisse observado o tempo todo. C. ficou em silêncio por um bom tempo, olhado fixamente para porta. O analista questiona “Parece que você não quer que algo passe daquela porta” (sic). C. continua em silêncio e o analista pergunta “O que você esconde C.? O que você não quer que as pessoas descubram? E por qual motivo você protege isso?”(Sic) o clima estava denso no ar e C. continuava olhando a porta fixamente, como se algo estivesse sido exposto e então responde: “Que eu estou triste... Silêncio... Que eu não tenho perspectiva... Silêncio... Que independente de eu terminar a faculdade e fazer o mestrado, eu não conseguirei ser feliz... Silêncio... Sabe, eu não sei o que é felicidade, por horas eu acho que é um estado, em outras eu penso que é um momento, uma coisa... Silêncio... No fundo, eu estou triste... Silêncio... Não sei se amo meu Marido suficiente como deveria amar... Silêncio... No fundo, parece que sou apenas um personagem... Silêncio... Que eu nunca vou conseguir ser feliz... Silêncio..." (sic), ficamos em silêncio por um tempo, C. chorou, eu entreguei um lenço, continuamos em silêncio, senti que nada mais poderia ser dito, naquela sessão, apenas sentido; ficamos os últimos 7 minutos em silêncio na presença um do outro, a sessão acabou e o clima já não era mais denso, e sim de alívio.


Conforme as sessões iam passando e ela ia elaborando os momentos em que atuava para outrem, a dinâmica das sessões se alterava, pouco a pouco C. passou a se dedicar em encontrar momentos em que agia de forma genuína e situações que faziam ela sentir real prazer na vida. Enquanto isso, C. descobria os objetos do consultório a cada sessão, e me contava com espanto se esses objetos já estavam lá; o quadro próximo do portão, a planta ao término das escadas, a parede cheia de molduras vazias que se preenchiam uma na outra, a escultura de duas faces uma segurando a outra debaixo das molduras vazias. Sessão após sessão os objetos eram descobertos, até que chegou a vez da sala do consultório, C. descobriu o vaso com vários rostos, a luminária que parecia uma turbina de avião, o quadro em cima do analista e por fim, que o seu analista tinha muitas tatuagens e ela se espantou. C. descobriu nas sessões seguintes, o quanto era linda, o quanto seu marido falava isso para ela e o quanto às vezes ela não se sentia bonita, o quanto foi bonito se vestir para si-mesma e olhar-se para o espelho e ver brilho.


As sessões passavam, até o dia que C. de repente, abriu o portão e me falou lá de baixo, “Doutor, acho que agora posso subir sozinha e descer também, tudo bem?” (sic), eu consenti com sua iniciativa. Posteriormente, contou-me como ela percebia as sessões “Sabe doutor, no começo das sessões eu pensava que estava falando para você, depois, senti que estava falando com você, depois entendi que eu estava falando comigo e só depois, percebi que era sempre comigo e que você estava ali, mas não como no começo, você estava fora, mas, ali comigo” (sic)


Breve análise do caso:


A partir da (in)possibilidade do atendimento remoto, por parte de intrusões ambientais, ou seja, falhas de conexões, constante intrusão por parte das pessoas que convivia com ela, dificuldade de assimilar as esferas público e privado, naturalização do ambiente intrusivo e sua constante sensação de que os outros estão julgando (Objeto persecutório). Me apresentaram que os Objetos Internos de C. representavam grandes ameaças e intrusões a sua vida subjetiva e que C. precisará “amadurecer” muito cedo.


A relação de C. com o enquadre, possibilitou observar a história de sua relação com as representações psíquicas e seu processo de simbolização, que demarcavam sobretudo, a partir das repetições de como ela não tinha um ambiente público/privado, que se estendia para ausência de limites interno/externo, Eu/Não-eu, representação/não-representações. O enquadre, transformou-se na ferramenta principal, para compreender, que os representantes não se ligavam e que sua função simbolizante era precária, suas falas eram sempre desorganizadas levando a associação livre para outro patamar. C. ao contar uma história, sempre narrava como se o analista soubesse quem eram os agentes que nela estavam, a identificação projetiva era seu mecanismo de defesa principal. Sua percepção sensorial, era aguçada e qualquer estímulo externo a desorganizava, como um olhar, um toque, etc. O Eu de C. não estava integrado, precisará de um falso-self para se proteger das invasões ambientais. Suas conquistas diante da universidade e independência, demarcavam o quanto isso se repetiu em sua história para não depender de outrem, pois o outro, representava intrusões.


Freud (1920) em “Recordar, Repetir e elaborar” nos apresenta que o processo de análise, perpassa pelo tempo da recordação, da repetição e por fim a elaboração, quando o sujeito, consegue elaborar os efeitos daquilo que o acarretou. No entanto, a repetição, pode tornar-se, uma compulsão a repetição, esta compulsão a repetição, diz respeito ao próprio processo de apropriação subjetiva a partir das experiências não integradas. Seria então, o equivalente à compulsão a integração, “[...] isto é, à representação e à simbolização; e que ela marcava o impacto de um imperativo de apropriação subjetiva” (ROUSSILLON, 2019, p.92). O que estava posto na transferência sobre o enquadre, era exatamente o que foi clivado do psiquismo de C..


Interpretei a partir das ocorrências e repetições, falhas em sua estrutura enquadrante, que enunciava uma dificuldade em sua função simbólica, mesmo que, de início C. não mencionava sobre sua relação com os cuidadores. Minha função como analista-ambiente, foi de proporcionar contenções a suas experiências emocionais e sustentar sua continuidade de vir-a-ser outrora clivada. As intervenções a partir das repetições que se enunciaram no enquadre, tiveram como objetivo ofertar o ambiente que delimita-se o que era público e o que era privado. Aspectos como sua dificuldade diante de entrar no portão, se movimentar pelo ambiente do consultório, se apresentavam como ansiedade de encontro a realidade externa. Não à toa, que C. exitou em entrar e se deparar com a presença do Analista-Objeto (externo). Aguardar um tempo, para que C. se ambientasse com a possibilidade do encontro, recepcioná-la no portão, subir as escadas, entrar na recepção e entrar na sala, enunciava de forma pré-verbal o que compreendi depois, C. falava mais pelos gestos do que pelas palavras.


Após 4 meses trabalhando na proteção do setting e em um enquadre flexível, pude ver, que C. sentia-se segura (holding) e que as sessões, agora poderia dar continuidade no processo de apropriação de si, em busca de representar-se. Brincamos de procurar palavras em nossas imaginações e encenar situações, C. me trouxe uma exposição artística que ela havia visitar, nessa exposição, tinha um mosaico de cerâmica, utilizamos essa imagem mental para compor as sessões, um desenho de cerâmica (imaginário), onde cada sessão ela colocava uma peça e ia construindo sua própria história. Eis que surge sua família, e o quanto sua mãe era agressiva e sempre batia em sua cabeça. C. por fim, conseguiu elaborar o quanto tinha que se esconder para não despertar a fúria de sua mãe.


O contrato narcísico que ela havia “assinado” era de desamparo, da impossibilidade de expressar sua angústia e desejos frente a suas necessidades fisiológicas e emocionais, e quando expressada, não ser atendida. Sua mãe, pelo contrário, se revoltava frente a impossibilidade de atendê-la e era agressiva (intrusiva), a presença era demarcada pelo excesso de agressividade de sua mãe. A psique em formação de C., respondeu aos ataques ambientais, a partir de uma identificação primária com os elementos não simbolizados da mãe, “Se fosse possível traduzir uma identificação inconsciente em palavras seria algo como ‘sou aquela cuja potência ameaça o narcisismo de minha mãe’” (MINERBO, 2018).


Referências

COSTA, E. S.. Racismo como metaenquadre. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 62, p. 146–163, dez. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rieb/a/CLZymtsWbbjRhLwnKT3yZPr/?lang=pt#

URRIBARRI, Fernando. André Green: paixão clínica, pensamento complexo. Contemporânea–Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre, n. 10, p. 11-43, 2010.

ROUSSILLON, René. O desamparo e as tentativas de solução para o traumatismo primário. Revista de Psicanálise, Porto Alegre, p. 271-295, 2012. Acessado em: 17 de outubro de 2023; Disponível em: https://reneroussillon.files.wordpress.com/2014/08/rr_desamparo_revista-sppa-v19-n2-2012.pdf

__________, R. Manual da Prática Clínica em Psicologia e Psicopatologia. 2. ed. São Paulo: Blucher, 2019.

MINERBO, M. Neurose e Não neurose. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.

_________, Marion. Núcleos neuróticos e não neuróticos: constituição, repetição e manejo na situação analítica. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v. 44, n. 2, p. 65-77, 2010 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2010000200009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 10 out. 2023.


Sobre o Autor: Ayrton Yuri Alves Souza (Graduado em Psicologia pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Pós-Graduando em "Saúde Coletiva com ênfase em Saúde da Família” pela Universidade Nove de Julho (2023). Membro Fundador e Ex-Presidente da Liga Acadêmica de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Nove de Julho (2019). Atua como psicólogo clínico e supervisor clínico, pela perspectiva psicanalítica. OBS: O relato de caso apresentado, seguiu os critérios do Código de ética do Profissional de Psicologia do CFP (2005), preservando o anonimato e principalmente, garantindo o caráter voluntário da participação dos envolvidos, mediante consentimento livre e esclarecido, proposto pelo Artigo 16 do (CFP, 2005).

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