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Além de preto é gay: as diásporas da bicha preta – Lucas Veiga


Fonte: Pinterest - Moonlight é eleito “Melhor Filme da Década” por crítica especializada | Põe Na Roda


*Resenha do artigo escrito por Lucas Motta Veiga (Psicólogo e Mestre em Psicologia e Estudos da Subjetividade pela UFF) - “Além de preto é gay: as diásporas da bicha preta".*


Hoje, nós vivemos em uma sociedade com o modo de produção capitalista e isso impacta diretamente em como nossa subjetividade é construída. O eurocentrismo é o modo de conhecimento produzido pelo capitalismo, onde naturaliza a experiência das pessoas através da perspectiva eurocêntrica/norte americana de maneira hegemônica. (Lugones, 2019).


Essa naturalização hegemônica das experiências cria narrativas para uma organização social hierárquica e é neste lugar que se cria a dialética entre o padrão e o que foge do padrão. O homem branco, heterossexual, cristão, burguês e sem deficiência é colocado como o ideal da humanidade (que foi criado no período colonial e é perpetuado até os dias de hoje) e cria-se uma hierarquização de valor a partir das características que fogem dele.


O autor começa o texto apresentando esse ideal e o poder que ele tem na construção do outro. O conceito usado para pensar este Outro foi produzido por Beauvoir, onde “o Outro” é criado a partir do “o Mesmo” que é o semelhante a mim, sendo “o Outro” aquele que é o diferente e que se distancia de mim. Ela exemplifica essa dualidade a partir dos ideais hegemônicos, por exemplo, a mulher é o outro do homem; o negro é o outro do branco; o indígena é o outro do colonizador e assim por diante. (Ribeiro, 2016) O autor prossegue no texto expondo a violência como instrumento fundamental da colonização, onde o colonizador se utiliza dela para categorizar o outro.


Na lógica capitalista de exploração, o Outro é visto sempre como o quase, aquele que tem um buraco vazio ou uma falta. Por ser um meio de exploração baseada no acumulo, o capitalismo se beneficia dessas ausências que cria e que nunca se esgotam. A existência do homem preto está nesse lugar de falta e isso só pode ser observado a partir da interseccionalidade, que olha justamente para esses lugares vazios entre a relação de gênero, raça, classe, sexualidade e várias outras coisas. (Lugones, 2019)


Diáspora parte 1

Fonte: Pinterest - Filme: Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016)


A Diáspora é um processo que pega elementos tradicionais de determinada cultura e as reinventa de acordo com o novo contexto que aquelas pessoas estão inseridas. Esse processo permite que a cultura proteja suas raízes ancestrais, mas que também incorpore aspectos de outras regiões criando novas tradições. A diáspora neste texto se trata da reinvenção de África através das tradições culturais e religiosas que resistiram depois do sequestro transatlântico; é a resistência pela humanização dessas pessoas que foi roubada pela escravidão. (Rodrigues, 2012)


A memória corporal da escravidão também faz parte da memória diaspórica, pois os traços das violências racistas que aconteceram no período colonial (os homicídios, suicídios, tortura, estupros etc) interferem na subjetividade das pessoas pretas. Uma das razões para essa memória continuar existindo é que essas práticas racistas continuam acontecendo, os altos índices de homicídios das pessoas pretas é um exemplo. Essas mortes acontecem em todos os campos (desde o real até o simbólico), no Brasil por exemplo, tivemos (e ainda temos se problematizarmos o sistema prisional) politicas eugenistas e sanitaristas que incentivavam o branqueamento da população que deu origem ao mito da democracia racial.


Como foi dito, esses fatores agem sobre a subjetividade das pessoas, o autor define subjetividade como a “produção de modos de ser, estar, sentir e perceber o mundo” (p.80). O racismo age sobre isso e sobre as relações que as pessoas estabelecem. Nas relações, o branco categoriza o negro como o não humano e o coloca no não lugar. Em “Peles negras, máscaras brancas” Fanon fala sobre a experiência de ser o preto:



No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera de incertezas. (p.104)

O não pertencimento, as angustias e o desamparo são algumas das consequências que o racismo trás. Esse processo é descrito por Hall (2003, p 415 citado por Veiga 2019):

Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diasporica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exilio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada. (p. 81)

Esses sentimentos são chamados de “afeto-diáspora” e se referem a frequente sensação de estado de alerta por estar fora de casa, é a negação da possibilidade de ser integrado ou acolhido. Esse afeto fala sobre a relação do sequestrado com o cativeiro, sobre a colonização e escravização e as consequências disso no hoje.


Diáspora parte 2 - A homossexualidade descoberta pelos homens pretos.




O ideal de masculinidade hegemônica é responsável por sustentar a lógica de violências patriarcal ocidental. O homem preto incorpora esses códigos comportamentais e morais na tentativa de se aproximar da humanidade de quem o colonizou. Essa introjeção da masculinidade hegemônica faz com que se criasse uma falsa noção de acúmulos de opressão, onde o homem preto por ser heterossexual reproduz comportamentos violentos com seus iguais.


A heterossexualidade nesses casos é vista como uma das barreiras que aquele indivíduo conseguiu derrubar rumo ao ideal e a sua negação é distanciamento cada vez maior da linha de chegada; ela é vista como única possibilidade de se ter uma vida minimamente boa e é jogada compulsoriamente para as pessoas.


O Brasil é um dos países que mais matam pretos e LGBTQIA+, o racismo e a homofobia estão enraizados na estrutura social e isso impacta as relações interpessoais. Os homens pretos homossexuais vivem aqui uma segunda diáspora, pois se tornam o Outro dentro do próprio grupo. O afeto-diaspora acontece dentro da própria casa e com as pessoas da própria família, onde o carinho e a inclusão são colocados a prova por conta da sua sexualidade, ocasionando diferentes graus de sofrimento psíquico como ansiedade, depressão etc.


O processo de contar para a família o que é ser uma “bixa preta” é doloroso, o medo de perder o lar, de perder a rede de apoio familiar, de ter que se afastar compulsoriamente da igreja e das amizades que tinha ali é desesperador. Os estereótipos reproduzidos pelas grandes mídias têm grande responsabilidade por esses processos serem tão violentos. Homens pretos homossexuais são constantemente estigmatizados, seus corpos são hipersexualidados nos pornôs e não são representados em histórias de amor; sendo assim qual o lugar dessas pessoas no amor? No desejo? Quais são as representações usadas para falar sobre elas? É importante refletir pois essas representações criam e perpetuam os lugares que elas podem e não podem estar.


Essas representações têm consequências muito graves na construção da própria imagem desses homens, o auto ódio e a baixa autoestima são alguns exemplos disso. O auto ódio por exemplo, age quando esse homem odeia seus fenótipos, sua pele e a história a qual pertence. A baixa autoestima é influenciada pelo auto ódio e encontra lugar na solidão, pois é ali que o desejo de se tornar um objeto de amor ganha espaço, mas não se concretiza; é nesse lugar que o reconhecimento é almejado, mas nunca vem.


“Vida me fez flor, no mesmo corpo fez granada”


O resgate da autoestima e o trabalho psicológico de ir contra o racismo e a lgbtqia+fobia exige uma postura ativa e grande carga afetiva, pois rompe com uma série de acordos que já estão estabelecidos socialmente. É entender que a postura antirracista age sobre aspectos estruturantes da sociedade, é descolonizar nossos olhares e nossas crenças. É estar aberto para as diferentes formas de existir, é acolher e se pertencer.


REFERÊNCIAS


Fanon, F. (2008). Peles negras, mascaras brancas. (R. Silveira , trad.).Salvador: EDUFBA


Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In Hollanda, H. B, (Org.), Pensamento feminista hoje perspectivas decoloniais (p.58-97) Rio de Janeiro: Bazar do tempo


Ribeiro, D. (2016). A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher. Recuperado de https://blogdaboitempo.com.br/2016/04/07/categoria-do-outro-o-olhar-de-beauvoir-e-grada-kilomba-sobre-ser-mulher/


Rodrigues, R. S. (2012). Entre o passado e o agora: diáspora negra e identidade cultural. Revista EPOS, 3(2) Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2012000200008


Veiga, L. (2019). Além de preto é gay: as diásporas da bixa preta. In Restirer, H. e Souza, R. M. (Org.), Diálogos Contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. (p. 77-93). São Paulo: Ciclo Continuo Editorial

SOBRE A AUTORA:

Kézia Silva Castro, Graduanda em Psicologia pela Universidade São Judas Tadeu. Se organiza nos Coletivos “Enegrecer USJT” e “Feminista USJT”. Atualmente faz parte do Grupo de estudo sobre Masculinidades da Liga Acadêmica de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade nove de Julho.

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